Quando uma realidade vira crime: MC Poze, entre a liberdade de expressão de uma voz que representa sua comunidade e a criminalização da mesma


Prisão que incomoda mais do que esclarece
A prisão de MC Poze do Rodo nesta quinta-feira, 29 de maio, não é apenas a detenção de mais um artista do funk. É mais uma cena do velho roteiro onde a arte da favela, quando incomoda, é tratada como crime. O funkeiro, nascido e criado nas quebradas do Rio, foi acusado de apologia ao tráfico e associação com o Comando Vermelho. Mas será mesmo que ele foi preso por promover o crime? Ou será que ele está pagando o preço por cantar o que viveu?
A operação e as acusações
Segundo a Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE), Poze foi preso em sua residência no Recreio dos Bandeirantes, Zona Oeste do Rio, durante uma operação que investiga supostos vínculos do cantor com a facção criminosa Comando Vermelho. A polícia afirma que suas letras, postagens em redes sociais e estilo de vida seriam indícios de apologia ao crime, uso de armas e exaltação de criminosos. Durante a operação, foram apreendidos bens como uma BMW X6 e joias de alto valor, incluindo um cordão de ouro com diamantes avaliado em R$ 2,8 milhões.
A realidade cantada pela favela
MC Poze nunca foi diplomático. Desde o início, suas letras falam de armas, drogas, dinheiro, ostentação. Sim, ele fala tudo isso — mas esse é o cotidiano de boa parte da juventude periférica. É o retrato cru, sem filtro, da quebrada abandonada pelo Estado, mas dominada por uma lógica de sobrevivência que os representantes públicos sequer tentam compreender, dentro da complexa realidade. Quando a elite canta sobre drogas em festivais caros ou portam armas em shows sertanejos, é “arte”. Quando a favela canta, é “apologia”?
Reincidência ou perseguição?
A defesa do cantor ainda não se pronunciou oficialmente, mas seus advogados informaram que aguardam acesso aos autos do processo para se manifestar. Importante lembrar que Poze já havia sido preso em 2019, durante um baile funk no Mato Grosso, sob acusações semelhantes — o que reforça a narrativa de que sua figura é constantemente associada ao crime, mesmo quando sua principal arma é o microfone.
Entre arte, denúncia e resistência
Há, sim, um debate necessário sobre o limite entre arte e incitação ao crime. Não se trata de romantizar a violência. Mas criminalizar o discurso é ignorar o contexto. MC Poze é produto e produtor de uma realidade violenta, mas ele também representa a chance de muitos jovens sonharem fora do ciclo do crime. Ele se tornou referência, exemplo de superação — ainda que sem se moldar aos padrões “aceitáveis” da classe média.
O silêncio que se tenta impor
A repressão seletiva a artistas periféricos não é novidade. MCs como Poze, Orochi, Djonga e outros sempre são cobrados a serem “exemplares”, enquanto o sistema que marginaliza suas comunidades permanece intacto. O Estado que os ignora na infância aparece na juventude com o coturno na porta e o mandado de prisão na mão. Caso eles mudem de vida e façam sucesso através da arte, a lógica continua a mesma, como visto na abordagem e forma de prisão do MC Poze: descalço, algemado com as mãos para trás, sem camiseta, com a cabeça sendo empurrada para baixo e com truculência. O que se quer, no fundo, é silenciar a realidade das favelas, e assim, silenciar um problema e alvo do Estado. Mais uma forma de não lidar com o problema.
O verdadeiro crime
Se a justiça quiser debater apologia, que comece olhando para os anúncios de armas nas redes, para o racismo institucional, para os discursos políticos que exaltam a morte como solução para a segurança pública. A favela canta sua dor e sua glória, porque é o que tem. Prender Poze com a justificativa que as suas letras e presença em palcos de favela o colocam dentro do crime organizado é claramente mais uma forma de racismo e preconceito institucional.
MC Poze do Rodo pode ser controverso, mas se tornou um símbolo. Ele é a voz que muitos gostariam de calar, porque incomoda. E incomoda porque é real. A arte periférica sempre foi resistência. E, no Brasil, resistir sendo preto, pobre e funkeiro é, para muitos, um ato considerado criminoso.
Foto: Reprodução web